25 - ONDE ANTES NADA ACONTECIA, TUDO MUDOU



 
Ana Carlota tentava viver os dias com a naturalidade possível, mas a guerra não lhe fez a vontade, e ela bem cedo começou a construir e imaginar uma outra realidade, uma em que a vida não lhe tivesse roubado Eduardo e apenas a fizesse sorrir.
O rio que se estendia junto à grande propriedade passou a ser o seu único conselheiro, e o mais fiel dos amigos. Ela deixou de falar e fechou-se num mundo só dela, olhava para o chão branco do seu quarto onde ficava sentada e nele se via refletida, como num espelho. Imaginava Eduardo perto de si, e recordava a festa do seu noivado onde os dois dançaram as valsas de Strauss pela noite dentro.
Este espaço perdido entre sonho e realidade prendia-os à vida. Era ali que Ana Carlota conseguia sentir Eduardo, e era àquele lugar que ele acreditava conseguir regressar mal terminasse aquela loucura.
Ana Carlota agarrou-se à memória dos momentos felizes que juntos partilharam, e rezava pela vida de Damião, ali, naquele lugar perdido entre sonho e realidade, onde olhava para o passado antecipando o futuro.
- Não quero que morras nessa guerra estúpida para onde te decidiram enviar. Não quero receber nenhuma notícia, não quero saber se estás morto ou desaparecido. Permanecerei escondida até ao teu regresso, aqui, por isso fiz questão de te mostrar este lugar, por isso eu rezo por nós!
Eduardo mal podia imaginar o suplício de Carlota. Ele tremia da cabeça aos pés sempre que os rebentamentos das várias bombas faziam abanar o chão e os ares. Não podia imaginar as infinitas vezes que ela rezava por ele, e nem tinha tempo para ter medo ou receio, apenas conseguia recordar, por breves instantes, o poder apaziguador do silêncio que habitava naquele quarto imaculado que a sua mulher lhe tinha dado a conhecer. Era nesses instantes quase milagrosos que ele julgava conseguir escutar as preces de Ana Carlota naquele singular tom de voz, tão doce e melodioso.
- Destino! É a merda do destino! Toujours cette guerre, abominable putain… Tudo está interligado, e tentar impedir que algo aconteça apenas fará com que tudo venha a acontecer de uma maneira ainda mais difícil de suportar. Le destin est rien de plus qu'une vieille pute!
Ana Carlota já imaginou todas as coisas capazes de o salvar, mas foi incapaz de imaginar que o marido iria partir para a frente de combate três semanas após o casamento.
- Destino! Tu não paravas de repetir essa palavra, Eduardo, era como se tu acreditasses que, ao fazê-lo, conseguirias alterá-lo. Não devemos esquecer que sonho e realidade são somente faces diferentes da mesma moeda, depois acordamos. Vivemos, sonhamos, e depois apaziguamos os nossos temores, deitamo-nos e ficamos de novo adormecidos, a viver e, quem sabe, a deixar de ter medo de sonhar.
Eduardo escutou as vozes e os gritos dos soldados inimigos, ao longe, e as metralhadoras e espingardas deixaram de rosnar.
- Tenho de conseguir sair deste lugar. E se estas vergonhosas trincheiras pertencerem a um sonho qualquer, um para o qual ninguém ainda obteve respostas? Um pesadelo que não se compreende nem se decifra talvez não tenha como perdurar. - Olhou para o relógio de pulso que continuava parado desde o início daquele dia. Qualquer coisa nele lhe dizia existir uma remota hipótese de poderem ser salvos e de não acontecer o que seria muito difícil de evitar.
- E se eu não te conseguir salvar, Eduardo? Tudo terá de acontecer conforme está planeado… Tudo está interligado, e tentar impedir que algo aconteça apenas fará com que tudo venha a acontecer de uma maneira ainda mais difícil de suportar.

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