20 - SE TE PUDESSES VER AO ESPELHO...
A casa, sempre esta casa, sempre a mesma casa, a surdir
nos seus sonhos com regularidade, e dias havia em que despontava na outra
margem do rio, sem ser em sonhos, e Ana depois já não queria acordar, e também
não se queixava deles. Eduardo Damião estava a fazer parte de um desses eventos
em que ela revisitava a habitação.
O rapaz decidiu-se e foi até ao alpendre. Abeirou-se
da porta e entrou na mansão. Chamou por Carlota, não obteve resposta. Depois
insistiu, com o nervoso miudinho a invadir-lhe o corpo.
Onde se teria ela metido, que não lhe respondia?
Caiu por um qualquer buraco do chão, ou terá sido
atacada por uma força oculta, vinda do além?
O que ali ia acontecendo não era coisa boa.
Eduardo acabou por se encher de coragem e passou a
pente fino todos os cantos e recantos de todas as divisões, salas, salinhas e
quartos do piso térreo. Depois desceu até ao claustro e chamou-a, aos berros, outra
dúzia de vezes. Abriu e fechou todas as portas de todos os armários e
roupeiros, puxou bambinelas e afastou reposteiros até ficar coberto de pó e
sujidade, e assustou-se ao ver a sua imagem distorcida refletida num espelho
velho e muito gasto. Subiu, por outras escadas, ao primeiro piso, que
calcorreou e investigou até à exaustão! Nada, não havia sinais de Carlota,
apenas dois pombos esvoaçam livremente por um dos corredores principais do
andar, e ele pensou que era ela quem lá vinha.
O vento assobiava de cada vez que passava pelas
muitas frinchas do soalho e pelas paredes rasgadas, e também fazia bater com
alguma violência as portadas das janelas.
Por onde andaria a rapariga, que não lhe respondia?
Só podia mesmo estar lá em cima, no topo do edifício, naquele lugar do sótão
onde iria construir um sumptuoso quarto com vista. Eduardo gritou o nome dela
muitas vezes, sem sucesso nenhum, e foi depois desses brados que Damião escutou
passos vindos dos pisos superiores. O soalho rangeu e mais poeira e lixo se
soltaram dos tetos da divisão. Agora não havia dúvida de que alguém passeava no
quarto de cima, e esse alguém só podia ser Ana Carlota.
O vento soprava com tal intensidade que a casa toda
carpia uma lamúria horrífica que o amedrontava. Outra rajada, bem mais forte
que as anteriores, empurrou as portadas das janelas quebradas da sala de
leitura, e estilhaçou o que ainda restava das antigas vidraças coloridas.
Eduardo estava incomodado com os lamentos da velha
residência, e teve medo de subir ao sótão do palacete. Ficou ali parado a olhar
os degraus, sem forças para se mover, com o barulho dos passos a ficar cada vez
mais perto e mais audível. Tudo acontecia lá em cima onde, supostamente, se
encontrava a sua companheira de aventura.
Talvez não fosse ela quem estivesse a provocar
aquela confusão?
Outros rumores estavam ativos, e chegavam da grande
escadaria. Era como se um grupo de andarilhos se tivesse lançado numa correria
desenfreada pelos degraus acima. Os estrondos misturavam-se com os ruídos do
soalho a ranger por cima da sua cabeça, com o permanente agitar de asas dos
dois pombos que procuravam uma saída, com o assobiar incessante do vento e com
as incómodas chiadeiras da velha mansão. O resultado daquela desafinação não
era agradável de se escutar, e Eduardo, que já só queria sair dali, virava a
cabeça em todas as direções, mas as pernas e os pés não lhe obedeciam.
- Eduardo! O que estás tu aí a fazer? Pareces um
tolinho a abanar a cabeça para todos os lados. Anda, vem cá acima, deixa-me
mostrar-te como é bonita a paisagem vista daqui. Sobe… mas o que é que se passa
contigo? Estás com cara de quem viu um fantasma. Se te pudesses ver ao espelho,
Eduardo! Estás mais branco do que a cal destas paredes.
Ali estava ela, aparecida vinda sabe-se lá de onde,
quase por magia.
Eduardo ficou aliviado com a sua aparição.
Ana Carlota sorria de contentamento. Aquela era a
sua casa e ela conhecia bem aquele mundo. Eduardo, que estava com medo da ruína,
assustou-se com os barulhos e só depois de a ter visto conseguiu arranjar
forças para se mexer. Subiu os degraus, muito depressa, e agarrou-lhe a mão
esquerda, não fosse ela voltar a desaparecer.
- Agora a sério, Eduardo! E mesmo verdade que não te
recordas da festa que aqui aconteceu? Eu sei que eras tu! Eu vi-te a valsar no
salão, e vais ter de me dizer quem era aquela bailarina de vestido verde, tão
parecida comigo, com quem tu dançavas.
Ele não entendeu nada da conversa, não fazia ideia
nenhuma do que ela lhe acabara de dizer.
A casa foi invadida por um silêncio insuportável,
apesar de ser bem visível a agitação que o vento ia provocando no exterior da
habitação.
- Só tu poderias ser capaz de brincar com uma coisa dessas.
Então foi para isto que me pediste que te trouxesse até aqui, para me pores à prova?
Querias ver se eu era medroso e influenciável? Pronto, ganhaste! É verdade, eu não
só tenho muito respeito por histórias de fantasmas como acredito que casas como
esta podem ser habitadas por almas do outro mundo
- Não sejas parvo, Eduardo! – respondeu-lhe Carlota,
de imediato, mantendo um sorriso maroto no rosto – Vá, diz-me lá quando foi a última
vez que entraste numa mansão assim tão bonita e extraordinária? Sim, tens razão,
eu ouvi-te sempre que me chamaste, mas resolvi brincar contigo e não te respondi.
Achas mesmo que é motivo para ficares assim tão “zangado” comigo?
Agora sabia que Ana Carlota era, decididamente, a rapariga
mais imprevisível que conhecera e era, de entre todas, a mais bela.
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