03 - SONHO OU REALIDADE
A casa era quase uma ruína. Grandes pedaços de
estuque tinham-se desprendido dos tetos e das paredes e encontravam-se
espalhados ao longo dos corredores e das escadarias da mansão.
Aquilo era triste de se ver, e depois surgiram centenas
de serpentes que rastejavam por entre tudo, negras e sibilantes. As cobras
tinham chegado transportadas pelo imenso tapete de musgo e de relva que cobriu
por completo o telhado cónico do grande torreão, assim como as suas grossas e
cilíndricas paredes de pedra.
Carlota fugiu, a correr, sem saber por onde avançar.
Encontrava-se no segundo piso da habitação e saltou sem hesitar por uma janela
entreaberta. Ficou algum tempo a pairar no vazio, até que chamas bem altas
irromperam no telhado do edifício ao mesmo tempo que alguns idosos mal
encarados se abeiraram das janelas e começaram a arremessar-lhe pedras
ininterruptamente. Alguns desses homens, para quem a vida terá sido uma espécie
de doença intolerável, lançaram-se, tal como ela, no espaço vazio. Saltaram e seguiram-na,
sem nunca pararem de lhe atirar as muitas pedras que carregavam. Aquelas gotas
escuras eram pesadas e feriam-na bastante sempre que lhe acertavam.
Carlota tentou resistir à tentação de olhar para
trás enquanto pairava no ar, mas não conseguiu. Ao virar-se, discerniu a casa
em chamas e cerca de uma vintena de homens velhos de olhar odioso a
esbracejarem na sua direção, até que foi atingida violentamente na cabeça por
uma pedra, e desmaiou.
A avó Bernardete reparou na súbita palidez da neta
mais velha, e no seu longo silêncio. Ela fitava o infinito com olhos de ausência,
olhos mortiços e assustados, até parecia que tinha acabado de ver algum
fantasma.
Ana Carlota não se mexia, preferiu ficar quieta à
espera que a sensação de desconforto acabasse por desaparecer, como sempre lhe
acontecia. Estes episódios – assim os começou a chamar – provocavam-lhe arrepios
e um sentimento semelhante ao do pavor, mas não exatamente igual.
Ela detestava ter de passar por aquilo.
Uma tremenda insegurança começou a invadi-la, e tudo
passou a ser pior desde essa madrugada quando o rio, seu companheiro
confidente, se encheu de limos e deixou de ser o amigo em quem sempre confiara.
O avô Tomé comunicou o desaparecimento do barco à
restante família, mas a avó Bernardete, que possuía um apuradíssimo sexto sentido,
percebeu que não era só por isso que a sua menina agia daquela maneira tão invulgar.
Ana Carlota viu a sala e a cozinha desaparecerem à frente
dos seus olhos. As paredes e o teto da casa dos avós passaram a ser outros, e tudo
aconteceu com impressionante rapidez, e a realidade passou, de novo, a ser aquele
pesadelo onde a antiga propriedade ardia, onde as cobras rastejavam e os idosos
a atacavam à pedrada. A pedra que antes lhe acertou na cabeça, voltara a viajar
pelo ar, só que agora voava devagar, muito devagarinho, e ela conseguiu corrigir-lhe
a trajetória para não ser atingida. Ao ter concretizado esse incumbência, o avô
reapareceu à mesa, tal como a prima Emília, a avó Bernardete, o tio Artur e a tia
Josefina.
Carlota teve um sonho mau, um sonho bem real que muito
a perturbou. Ela ficou sem saber se estava acordada ou se ainda estaria a sonhar,
e foi então que os cães começaram a ladrar.
Comentários
Enviar um comentário