05 - DEIXARAM ESCAPAR O ESPÍRITO DO RIO
Ana Carlota permaneceu debruçada no barco a observar
o fundo do rio, e sempre que o sol conseguia espreitar por entre as nuvens
fazendo a água brilhar, os telhados cónicos da casa surgiam refletidos e o seu
coração batia mais depressa. Ela observava tudo o que se ia passando com a
máxima atenção. Detestava sentir aquela sensação de insegurança, mas bastava olhar para os limos que cobriam o
leito do rio e muitas das zonas ao longo daquela margem, para logo se acalmar.
Sem limos, os sonhos de Carlota tornavam-se
selvagens, desrespeitadores e caóticos, deixavam de possuir a serenidade
necessária para que ela pudesse descansar, por isso aquele passeio com a prima
e o avô acontecia na melhor altura.
O dia passava de maneira muito agradável, apesar da
pescaria estar a ser fraca. A prima Emília ajudou o avô Tomé a preparar outra
dose de engodos, com a mestria de sempre, e mal lançaram à água uma generosa
quantidade do preparado, de imediato vislumbraram um raro cardume de carpas a
aproximar-se da embarcação, atraídas pela comida. Formavam uma espécie de longa
língua ziguezagueante, prateada e cintilante.
O balde de plástico branco onde o avô guardava a
mistela mágica estava quase vazio, por isso tudo dependia do que se passasse a
seguir. Restava-lhes apenas esperar que um dos anzóis fosse mordido. Eles nem
ousavam respirar, e davam pouco uso aos músculos do corpo para manter a
quietude. O barco do compadre Jesuíno flutuava com uma nobreza tão respeitadora
desses silêncios, que até parecia ter sido ensinado. O pior é que os peixes
conseguiam alimentar-se sem serem apanhados. Eram bastante lúcidos e muito
sensatos. Ana Carlota achou graça à inteligência demonstrada pelos animais, até
parecia que os peixes é que eram os verdadeiros pescadores. Emília deu conta de
alguns ousarem colocar a cabeça fora da água para comerem melhor. A pescaria estava
quase a transformar-se em fracasso quando o improvável acabou por acontecer. O
avô Tomé sentiu um pequeno puxão na cana de pesca, e outro logo a seguir. Era
um peixe a morder o anzol, e pela força com que o fazia, devia ser bem
crescidinho. Não fosse ele um experimentado pescador, certamente teria deixado
o animal escapar, tal foi a força aplicada pela carpa.
A luta tinha começado, o barco abanava, as raparigas
tentavam ajudar o avô como podiam, dando-lhe incentivos e conselhos mais ou
menos absurdos de como devia proceder para conseguir dominar aquele peixe
voluntarioso. Tomé rodava o carreto, e puxava, e voltava a rodar, e teve a
certeza de que aquela era a maior das carpas que alguma vez mordera um dos seus
anzóis. O espírito do rio tinha sido enganado pelo avô Tomé, e agora os peixes
todos sabiam que aquele não era um pescador qualquer.
Carlota começou a ficar assustada e muito enjoada
com a forma embrutecida como a luta acontecia. Sentiu pena do espírito do rio e
deixou de ajudar o avô, ao contrário da prima, que berrava e gesticulava e não
parava de o orientar no combate. O barco balançava imenso, sempre muito agitado
em desequilíbrio constante, e um vómito saiu-lhe em forma de jato para cima do
avô e da Emília, aquecendo-lhes os tornozelos e os dedos dos pés. Agora é que o
dia de pescaria tinha ficado definitivamente estragado. A prima estava muito
mal disposta com o sucedido. O aspeto viscoso e repugnante daquela pasta alaranjada
que lhe tapava os pés, aliado ao cheiro nauseabundo que dali emanava, fizeram
com que também ela acabasse por vomitar. O avô Tomé largou a cana e abandonou a
luta para acudir às duas netas que não paravam de vomitar.
O sucedido ficou a dever-se exclusivamente à vontade
dos limos, que assim o decidiram. A grande carpa, espírito do rio, foi salva
por um momento de fraqueza de Carlota, uma feliz coincidência que parecia
destinada a acontecer, mas que só se passou por desejo das algas. Mais tarde,
quando tiver adquirido maior experiência de vida, será ela a decidir o que irá
acontecer nos seus sonhos. Por agora, terá de aprender a lidar com o desejo dos
limos.
- Caramba, meninas! Ora bolas, … acabei por ter de
deixar escapar aquela belíssima carpa! Mas como é que vocês ficaram assim tão
mal dispostas, raparigas? – perguntou o avô Tomé, algo desalentado.
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